terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Nós e as Múmias - Entrevista com Christian Jacq



O escritor francês, autor da série de romances
Ramsés, diz que o mundo contemporâneo
deve muito ao Antigo Egito


Carlos Graieb

Desde o final de 1998, a lista de livros mais vendidos de VEJA, principal referência tanto para leitores como para editores brasileiros, hospeda as obras do francês Christian Jacq. Autor de romances ambientados no Antigo Egito, berço de uma das civilizações mais fascinantes da História humana, Jacq fala de faraós e princesas do Nilo com a autoridade de estudioso do assunto. Ele é capaz de ler hieróglifos como quem lê o jornal na mesa do café da manhã. O escritor apaixonou-se pelo Egito no início da adolescência e visita o Cairo diversas vezes por ano, onde é recebido de maneira calorosa pelos arqueólogos lá baseados. "É nas velhas tumbas, entre pinturas e inscrições milenares, que me sinto em casa", costuma dizer. Em seus livros, Jacq mistura conhecimento histórico com aventura e fantasia. Sua fórmula vem alcançando um sucesso extraordinário. Em 25 países, os cinco volumes da série Ramsés venderam mais de 5 milhões de exemplares – 250.000 dos quais só no Brasil. Jacq acaba de lançar uma nova saga, A Pedra da Luz, que já ocupa o primeiro lugar na lista de mais vendidos de VEJA. Serão quatro romances no total. Nesta entrevista, ele fala sobre múmias, arqueologia e o futuro das pirâmides.



VEJA – Como o senhor explica essa mania atual pelas coisas do Antigo Egito?

Jacq A "egiptomania", como dizem os franceses, não tem nada de recente. Ela foi e voltou várias vezes ao longo dos últimos 500 anos. Nos séculos XIV e XV, o enigma dos hieróglifos ocupou diversas mentes brilhantes. Na época dos grandes impérios europeus, o Antigo Egito exerceu um fascínio especial sobre os poderosos – Napoleão, por exemplo, era um apaixonado pelas pirâmides. Quanto ao século XX, acho que um momento foi importante para atrair o interesse das pessoas: a descoberta da tumba de Tutancâmon, com seu tesouro maravilhoso. Esse evento ganhou as páginas dos jornais e criou uma mística que parece inesgotável. E ela tem razão de ser – afinal de contas, estamos falando de uma das maiores civilizações da História universal. O Antigo Egito foi um dos berços da medicina, da literatura e das artes. Lá nasceram valores e idéias que ainda permanecem vivos.


VEJA – Quais? 

Jacq – Pense na tolerância. Os egípcios jamais promoveram perseguições religiosas. Entre eles não havia absolutismo moral. Foi no Egito, ainda, que nasceu a idéia de espírito. Mais: de que matéria e espírito deveriam viver em harmonia. A sociedade egípcia almejava a felicidade terrena e acreditava que todos os seus estratos tinham direito a ela. Alguns fundamentos do cristianismo podem ser considerados adaptações da antiga religião egípcia. O mais visível é o próprio conceito de eternidade – de que a vida terrena não é mais do que uma passagem para uma dimensão maior. A idéia do Cristo-Rei, por oposição ao Cristo sofredor e torturado, também tem raízes egípcias.

VEJA – E quanto à tradição literária?

Jacq –  O Egito nos legou um grande número de textos verdadeiramente artísticos, que são objeto de estudo dos egiptólogos. Para começar, temos as inscrições nas pirâmides e monumentos. Eu não hesitaria em compará-las às maiores epopéias da Antiguidade, como a Ilíada ou a Odisséia, ou até mesmo a obras mais tardias, como a Divina Comédia, de Dante. Elas relatam verdadeiras viagens do espírito humano. Além disso, existe um extenso corpo de poesias líricas e de narrativas de aventuras. Há ainda relatos históricos, como o da Batalha de Kadesh, que serviu de base para um de meus romances, e livros de sabedoria, dos quais traduzi alguns, cheios de conselhos e máximas. Estes últimos seriam equivalentes aos manuais de auto-ajuda de hoje em dia.

VEJA No cinema, principalmente, as múmias foram transformadas em monstros. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

Jacq – As pobres múmias já causaram todo tipo de impacto sobre o imaginário ocidental. No século XIX, havia uma crença absurda de que o pó das múmias tinha poderes afrodisíacos. Por causa disso, inúmeras tumbas foram violadas e seus conteúdos destruídos. A transformação das múmias em monstros é, em boa parte, culpa de exploradores desleixados, que as manuseavam e transportavam sem tomar os cuidados necessários. Dessa forma, muitas assumiram de fato um aspecto horrendo. Mas basta olhar uma múmia bem conservada para mudar de idéia. Uma das mais famosas é a de Seti I, o pai de Ramsés. Diante dela, você ainda pode sentir todo o poder e a sabedoria daquele homem.

 Devemos lembrar, também, que as múmias eram símbolos de vida, e não de morte. Os egípcios as produziam para evitar que a essência humana se dispersasse no vácuo. Nos últimos tempos, as múmias voltaram a ser admiradas. Recentemente, uma sala especial dedicada a elas foi inaugurada no Museu do Cairo. Exige-se dos visitantes que eles observem um silêncio respeitoso, e as pessoas realmente ficam quietas, pois a visão é impressionante. Quanto à famosa maldição de Tutancâmon, creio que não há muito mais a dizer. Alguns dos primeiros exploradores da tumba morreram por inspirar um fungo que crescia nas suas paredes. As outras mortes atribuídas à maldição são bobagem. Fiquem tranqüilos, leitores, as múmias não lhes desejam mal.

VEJASeus livros são marcados pelo misticismo. O senhor é místico?

Jacq – Não, não sou místico. Como autor, tento mostrar como os egípcios viviam a sua própria realidade. Era uma civilização em que os espíritos e a magia pontuavam vários aspectos do cotidiano. Um ponto curioso e pouco divulgado é que os egípcios acreditavam na existência de um Deus único. Ele, no entanto, se manifestava por meio de divindades menores, ligadas aos elementos – a água, o fogo, o ar e a terra.

VEJA – Há muitas informações a respeito da sexualidade dos antigos egípcios?

Jacq – A base da família egípcia era o casal. Dois ou três filhos eram bem-vindos, mas a falta de descendentes não representava uma tragédia. Um fato particularmente interessante é que as mulheres egípcias dispunham de diversos métodos contraceptivos. Ou seja, a mulher era livre em suas escolhas. Os egípcios, aliás, nutriam um grande amor pelas mulheres. Não é difícil saber o porquê: elas eram muito bonitas, como mostram as imagens que sobreviveram. Por falar em imagens, existem papiros com ilustrações de posições eróticas, os quais constituem uma espécie de Kama Sutra.

VEJANa Antiga Grécia, a homossexualidade ocupava um lugar de destaque. E no Egito?

Jacq Há referências à homossexualidade em certos textos, mas aparentemente os egípcios não a apreciavam muito. Algumas fontes de mandamentos morais, inclusive, mencionam a rejeição à homossexualidade. Os egípcios eram um povo tolerante, mas não davam a essa prática a mesma importância social que os gregos.

VEJAQual a idéia mais errada que as pessoas fazem em relação ao Antigo Egito?


Jacq – A de que as pirâmides foram construídas por escravos, que passavam por terríveis privações, eram chicoteados e tudo o mais. Todos os egiptólogos já refutaram essa idéia, mas ela ainda persiste nos filmes e no imaginário popular. 

Jamais houve escravidão no Egito. Todos os que trabalharam na construção dos monumentos recebiam salário – embora, como hoje, houvesse diferenças marcantes entre os salários dos diversos tipos de operários.

 Um segundo erro é o de que o faraó seria uma espécie de tirano, cercado de servas e concubinas. Pois bem: eu não desejaria a ninguém o cotidiano de um faraó, que era ainda mais pesado do que o de um chefe de Estado atual. Para começar, ele precisava acordar antes do amanhecer e fazer suas orações no templo. Em seguida, tinha de cumprir uma longa agenda de reuniões com ministros, com emissários de outros países etc. Além disso, o faraó não era um monarca absolutista. O regime egípcio estava muito mais próximo da monarquia constitucional. O rei devia respeitar uma série de normas, fundadas sobre as idéias de retidão e justiça e sobre a necessidade de alimentar toda a população. Os textos dizem literalmente que o faraó estava sujeito a essas leis primárias.

VEJA Ramsés, herói de seus livros, seria um bom governante nos dias de hoje?

Jacq – Creio que sim. Na época, a região compreendia povos com interesses conflitantes, como palestinos, hititas, sírios etc. Ramsés conseguiu promover a paz entre eles. Até hoje podemos ver o tratado que sela essa paz, escrito em hieróglifos nos muros de Karnak. É um texto de inacreditável modernidade.

VEJAA idéia do arqueólogo como uma espécie de Indiana Jones faz algum sentido atualmente?

Jacq – Não. O arqueólogo como aventureiro pertence mais ao século XIX. Hoje, a grande aventura para a arqueologia está na exploração dos métodos científicos, que vão desde a biologia molecular até o uso de satélites para o mapeamento de sítios.

 VEJA Cientistas descobriram traços de tabaco e cocaína nos tecidos de uma múmia. Como isso é possível se ambos os produtos são originários da América?

Jacq – Bem, há quem diga que existia uma rota de comércio entre o Antigo Egito e a América. Além das amostras de tabaco e cocaína nas múmias, os defensores dessa tese apontam como evidência o fato de os astecas também terem construído pirâmides. Conheço muito pouco as civilizações da América do Sul para dar uma opinião séria a respeito desse ponto, mas acho que é preciso manter o espírito aberto. Eis aí uma bela questão para os jovens arqueólogos. Não acho que seja absurda a idéia de que os egípcios possam ter realizado viagens transoceânicas.

VEJA Países como a Grécia reclamam a devolução de objetos que foram retirados de seus sítios arqueológicos e levados para museus da Inglaterra e da França. O senhor acha justo esse tipo de reivindicação?

Jacq – Minha visão é pragmática. Durante muito tempo, o governo egípcio não mostrou a menor preocupação em preservar seu acervo arqueológico. 

Ninguém roubou o obelisco que enfeita a Praça da Concórdia, em Paris. Ele simplesmente foi vendido à França. Há também templos inteiros que foram doados a determinados países europeus por razões políticas. Será que deveríamos devolver tudo? No plano moral, sim. No plano prático, acho que não podemos ter ilusões. Os objetos que preenchem as prateleiras do Louvre, do Museu Britânico ou do Museu de Turim dificilmente voltarão ao Egito. 

Para mim, a solução ideal está na reconstituição dos monumentos mais importantes. Dou-lhe um exemplo: ao lado da pirâmide de Saqqara, existe um santuário onde foi colocada uma imitação perfeita da estátua original do faraó. Ficou ótimo. Há muitos sítios que poderiam passar por reformas semelhantes, sem que para tanto fosse necessário gastar quantias absurdas de dinheiro.

VEJA O que falta descobrir no Egito?

Jacq – Segundo as estimativas mais recentes, descobrimos somente 20% ou 30% de tudo o que existe sob as areias do Egito. Mesmo no caso dos sítios mais conhecidos, como o de Gizé ou o de Saqqara, há várias áreas que permanecem intocadas. Uma das descobertas que ainda precisam ser feitas é a do túmulo de Imhotep. Ele era arquiteto, médico, astrônomo e escritor. Foi um dos grandes espíritos da História da humanidade. O local da tumba é um mistério para os arqueólogos, mas já foi visitado por ladrões. Existem vários objetos com o nome de Imhotep, de autenticidade comprovada, que já foram vendidos por antiquários.

VEJA As pirâmides sobreviverão por mais quarenta séculos?


Jacq Sou pessimista. Há inúmeros problemas, e não sabemos como solucioná-los. Para começar, a Barragem de Assuã mudou o clima do Egito. Hoje, chove muito mais do que na Antiguidade e as pedras são sensíveis à umidade. Existe ainda a questão demográfica. A população do Egito aumenta à razão de 1 milhão de habitantes por ano e, com ela, crescem as cidades. Casas e prédios foram construídos às margens do platô das pirâmides. Por fim, existe o grave problema da poluição. Se não surgirem novas técnicas de preservação, acho difícil que esses monumentos durem outros 4.000 anos


Revista VEJA  edição 1648 de 10/02/2000