O escritor francês, autor da série de romances
Ramsés, diz que o mundo contemporâneo
deve muito ao Antigo Egito
Carlos Graieb
Desde o final de 1998, a lista de livros mais vendidos de
VEJA, principal referência tanto para leitores como para editores brasileiros,
hospeda as obras do francês Christian Jacq. Autor de romances ambientados no
Antigo Egito, berço de uma das civilizações mais fascinantes da História
humana, Jacq fala de faraós e princesas do Nilo com a autoridade de estudioso
do assunto. Ele é capaz de ler hieróglifos como quem lê o jornal na mesa do
café da manhã. O escritor apaixonou-se pelo Egito no início da adolescência e
visita o Cairo diversas vezes por ano, onde é recebido de maneira calorosa
pelos arqueólogos lá baseados. "É nas velhas tumbas, entre pinturas e
inscrições milenares, que me sinto em casa", costuma dizer. Em seus
livros, Jacq mistura conhecimento histórico com aventura e fantasia. Sua
fórmula vem alcançando um sucesso extraordinário. Em 25 países, os cinco
volumes da série Ramsés venderam mais de 5 milhões de exemplares – 250.000 dos
quais só no Brasil. Jacq acaba de lançar uma nova saga, A Pedra da Luz, que já
ocupa o primeiro lugar na lista de mais vendidos de VEJA. Serão quatro romances
no total. Nesta entrevista, ele fala sobre múmias, arqueologia e o futuro das
pirâmides.
VEJA – Como o senhor explica essa mania atual pelas coisas
do Antigo Egito?
VEJA – Quais?
Jacq – Pense na tolerância. Os egípcios jamais promoveram perseguições religiosas. Entre eles não havia absolutismo moral. Foi no Egito, ainda, que nasceu a idéia de espírito. Mais: de que matéria e espírito deveriam viver em harmonia. A sociedade egípcia almejava a felicidade terrena e acreditava que todos os seus estratos tinham direito a ela. Alguns fundamentos do cristianismo podem ser considerados adaptações da antiga religião egípcia. O mais visível é o próprio conceito de eternidade – de que a vida terrena não é mais do que uma passagem para uma dimensão maior. A idéia do Cristo-Rei, por oposição ao Cristo sofredor e torturado, também tem raízes egípcias.
VEJA – E quanto à tradição literária?

Devemos lembrar, também, que as múmias eram símbolos de vida, e não de morte.
Os egípcios as produziam para evitar que a essência humana se dispersasse no
vácuo. Nos últimos tempos, as múmias voltaram a ser admiradas. Recentemente,
uma sala especial dedicada a elas foi inaugurada no Museu do Cairo. Exige-se
dos visitantes que eles observem um silêncio respeitoso, e as pessoas realmente
ficam quietas, pois a visão é impressionante. Quanto à famosa maldição de
Tutancâmon, creio que não há muito mais a dizer. Alguns dos primeiros
exploradores da tumba morreram por inspirar um fungo que crescia nas suas
paredes. As outras mortes atribuídas à maldição são bobagem. Fiquem tranqüilos,
leitores, as múmias não lhes desejam mal.
VEJA – Seus livros são marcados pelo misticismo. O senhor é
místico?
Jacq – Não, não sou místico. Como autor, tento mostrar como
os egípcios viviam a sua própria realidade. Era uma civilização em que os
espíritos e a magia pontuavam vários aspectos do cotidiano. Um ponto curioso e
pouco divulgado é que os egípcios acreditavam na existência de um Deus único.
Ele, no entanto, se manifestava por meio de divindades menores, ligadas aos
elementos – a água, o fogo, o ar e a terra.
VEJA – Há muitas informações a respeito da sexualidade dos
antigos egípcios?

VEJA – Na Antiga Grécia, a homossexualidade ocupava um lugar
de destaque. E no Egito?
Jacq – Há referências à homossexualidade em certos textos,
mas aparentemente os egípcios não a apreciavam muito. Algumas fontes de
mandamentos morais, inclusive, mencionam a rejeição à homossexualidade. Os
egípcios eram um povo tolerante, mas não davam a essa prática a mesma
importância social que os gregos.
VEJA – Qual a idéia mais errada que as pessoas fazem em
relação ao Antigo Egito?
Jacq – A de que as pirâmides foram construídas por escravos,
que passavam por terríveis privações, eram chicoteados e tudo o mais. Todos os
egiptólogos já refutaram essa idéia, mas ela ainda persiste nos filmes e no
imaginário popular.
Jamais houve escravidão no Egito. Todos os que trabalharam
na construção dos monumentos recebiam salário – embora, como hoje, houvesse
diferenças marcantes entre os salários dos diversos tipos de operários.
Um
segundo erro é o de que o faraó seria uma espécie de tirano, cercado de servas
e concubinas. Pois bem: eu não desejaria a ninguém o cotidiano de um faraó, que
era ainda mais pesado do que o de um chefe de Estado atual. Para começar, ele
precisava acordar antes do amanhecer e fazer suas orações no templo. Em
seguida, tinha de cumprir uma longa agenda de reuniões com ministros, com
emissários de outros países etc. Além disso, o faraó não era um monarca
absolutista. O regime egípcio estava muito mais próximo da monarquia
constitucional. O rei devia respeitar uma série de normas, fundadas sobre as
idéias de retidão e justiça e sobre a necessidade de alimentar toda a
população. Os textos dizem literalmente que o faraó estava sujeito a essas leis
primárias.
VEJA – Ramsés, herói de seus livros, seria um bom governante
nos dias de hoje?
Jacq – Creio que sim. Na época, a região compreendia povos
com interesses conflitantes, como palestinos, hititas, sírios etc. Ramsés
conseguiu promover a paz entre eles. Até hoje podemos ver o tratado que sela
essa paz, escrito em hieróglifos nos muros de Karnak. É um texto de
inacreditável modernidade.
VEJA – A idéia do arqueólogo como uma espécie de Indiana
Jones faz algum sentido atualmente?
Jacq – Não. O arqueólogo como aventureiro pertence mais ao
século XIX. Hoje, a grande aventura para a arqueologia está na exploração dos
métodos científicos, que vão desde a biologia molecular até o uso de satélites
para o mapeamento de sítios.
VEJA – Cientistas descobriram traços de tabaco e cocaína nos
tecidos de uma múmia. Como isso é possível se ambos os produtos são originários
da América?
Jacq – Bem, há quem diga que existia uma rota de comércio
entre o Antigo Egito e a América. Além das amostras de tabaco e cocaína nas
múmias, os defensores dessa tese apontam como evidência o fato de os astecas
também terem construído pirâmides. Conheço muito pouco as civilizações da
América do Sul para dar uma opinião séria a respeito desse ponto, mas acho que
é preciso manter o espírito aberto. Eis aí uma bela questão para os jovens
arqueólogos. Não acho que seja absurda a idéia de que os egípcios possam ter
realizado viagens transoceânicas.
VEJA – Países como a Grécia reclamam a devolução de objetos
que foram retirados de seus sítios arqueológicos e levados para museus da
Inglaterra e da França. O senhor acha justo esse tipo de reivindicação?
Jacq – Minha visão é pragmática. Durante muito tempo, o
governo egípcio não mostrou a menor preocupação em preservar seu acervo
arqueológico.
Ninguém roubou o obelisco que enfeita a Praça da Concórdia, em
Paris. Ele simplesmente foi vendido à França. Há também templos inteiros que
foram doados a determinados países europeus por razões políticas. Será que
deveríamos devolver tudo? No plano moral, sim. No plano prático, acho que não
podemos ter ilusões. Os objetos que preenchem as prateleiras do Louvre, do
Museu Britânico ou do Museu de Turim dificilmente voltarão ao Egito.
Para mim,
a solução ideal está na reconstituição dos monumentos mais importantes. Dou-lhe
um exemplo: ao lado da pirâmide de Saqqara, existe um santuário onde foi
colocada uma imitação perfeita da estátua original do faraó. Ficou ótimo. Há
muitos sítios que poderiam passar por reformas semelhantes, sem que para tanto
fosse necessário gastar quantias absurdas de dinheiro.
VEJA – O que falta descobrir no Egito?
Jacq – Segundo as estimativas mais recentes, descobrimos
somente 20% ou 30% de tudo o que existe sob as areias do Egito. Mesmo no caso
dos sítios mais conhecidos, como o de Gizé ou o de Saqqara, há várias áreas que
permanecem intocadas. Uma das descobertas que ainda precisam ser feitas é a do túmulo
de Imhotep. Ele era arquiteto, médico, astrônomo e escritor. Foi um dos grandes
espíritos da História da humanidade. O local da tumba é um mistério para os
arqueólogos, mas já foi visitado por ladrões. Existem vários objetos com o nome
de Imhotep, de autenticidade comprovada, que já foram vendidos por antiquários.
VEJA – As pirâmides sobreviverão por mais quarenta séculos?
Jacq – Sou pessimista. Há inúmeros problemas, e
não sabemos como solucioná-los. Para começar, a Barragem de Assuã mudou o clima
do Egito. Hoje, chove muito mais do que na Antiguidade e as pedras são
sensíveis à umidade. Existe ainda a questão demográfica. A população do Egito
aumenta à razão de 1 milhão de habitantes por ano e, com ela, crescem as
cidades. Casas e prédios foram construídos às margens do platô das pirâmides.
Por fim, existe o grave problema da poluição. Se não surgirem novas técnicas de
preservação, acho difícil que esses monumentos durem outros 4.000 anos
Revista VEJA edição 1648 de 10/02/2000