VEJA – Quais?
Jacq – Pense na tolerância. Os egípcios jamais promoveram perseguições religiosas. Entre eles não havia absolutismo moral. Foi no Egito, ainda, que nasceu a idéia de espírito. Mais: de que matéria e espírito deveriam viver em harmonia. A sociedade egípcia almejava a felicidade terrena e acreditava que todos os seus estratos tinham direito a ela. Alguns fundamentos do cristianismo podem ser considerados adaptações da antiga religião egípcia. O mais visível é o próprio conceito de eternidade – de que a vida terrena não é mais do que uma passagem para uma dimensão maior. A idéia do Cristo-Rei, por oposição ao Cristo sofredor e torturado, também tem raízes egípcias.
VEJA – E quanto à tradição literária?
Jacq – O Egito nos legou um grande número de textos verdadeiramente
artísticos, que são objeto de estudo dos egiptólogos. Para começar, temos as
inscrições nas pirâmides e monumentos. Eu não hesitaria em compará-las às
maiores epopéias da Antiguidade, como a Ilíada ou a Odisséia, ou até mesmo a
obras mais tardias, como a Divina Comédia, de Dante. Elas relatam verdadeiras viagens
do espírito humano. Além disso, existe um extenso corpo de poesias líricas e de
narrativas de aventuras. Há ainda relatos históricos, como o da Batalha de
Kadesh, que serviu de base para um de meus romances, e livros de sabedoria, dos
quais traduzi alguns, cheios de conselhos e máximas. Estes últimos seriam
equivalentes aos manuais de auto-ajuda de hoje em dia.
VEJA – No cinema, principalmente, as múmias foram
transformadas em monstros. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Jacq – As pobres múmias já causaram todo tipo de impacto
sobre o imaginário ocidental. No século XIX, havia uma crença absurda de que o
pó das múmias tinha poderes afrodisíacos. Por causa disso, inúmeras tumbas
foram violadas e seus conteúdos destruídos. A transformação das múmias em
monstros é, em boa parte, culpa de exploradores desleixados, que as manuseavam
e transportavam sem tomar os cuidados necessários. Dessa forma, muitas
assumiram de fato um aspecto horrendo. Mas basta olhar uma múmia bem conservada
para mudar de idéia. Uma das mais famosas é a de Seti I, o pai de Ramsés.
Diante dela, você ainda pode sentir todo o poder e a sabedoria daquele homem.
Devemos lembrar, também, que as múmias eram símbolos de vida, e não de morte.
Os egípcios as produziam para evitar que a essência humana se dispersasse no
vácuo. Nos últimos tempos, as múmias voltaram a ser admiradas. Recentemente,
uma sala especial dedicada a elas foi inaugurada no Museu do Cairo. Exige-se
dos visitantes que eles observem um silêncio respeitoso, e as pessoas realmente
ficam quietas, pois a visão é impressionante. Quanto à famosa maldição de
Tutancâmon, creio que não há muito mais a dizer. Alguns dos primeiros
exploradores da tumba morreram por inspirar um fungo que crescia nas suas
paredes. As outras mortes atribuídas à maldição são bobagem. Fiquem tranqüilos,
leitores, as múmias não lhes desejam mal.
VEJA – Seus livros são marcados pelo misticismo. O senhor é
místico?
Jacq – Não, não sou místico. Como autor, tento mostrar como
os egípcios viviam a sua própria realidade. Era uma civilização em que os
espíritos e a magia pontuavam vários aspectos do cotidiano. Um ponto curioso e
pouco divulgado é que os egípcios acreditavam na existência de um Deus único.
Ele, no entanto, se manifestava por meio de divindades menores, ligadas aos
elementos – a água, o fogo, o ar e a terra.
VEJA – Há muitas informações a respeito da sexualidade dos
antigos egípcios?
Jacq – A base da família egípcia era o casal. Dois ou três
filhos eram bem-vindos, mas a falta de descendentes não representava uma
tragédia. Um fato particularmente interessante é que as mulheres egípcias
dispunham de diversos métodos contraceptivos. Ou seja, a mulher era livre em
suas escolhas. Os egípcios, aliás, nutriam um grande amor pelas mulheres. Não é
difícil saber o porquê: elas eram muito bonitas, como mostram as imagens que
sobreviveram. Por falar em imagens, existem papiros com ilustrações de posições
eróticas, os quais constituem uma espécie de Kama Sutra.
VEJA – Na Antiga Grécia, a homossexualidade ocupava um lugar
de destaque. E no Egito?
Jacq – Há referências à homossexualidade em certos textos,
mas aparentemente os egípcios não a apreciavam muito. Algumas fontes de
mandamentos morais, inclusive, mencionam a rejeição à homossexualidade. Os
egípcios eram um povo tolerante, mas não davam a essa prática a mesma
importância social que os gregos.
VEJA – Qual a idéia mais errada que as pessoas fazem em
relação ao Antigo Egito?
Jacq – A de que as pirâmides foram construídas por escravos,
que passavam por terríveis privações, eram chicoteados e tudo o mais. Todos os
egiptólogos já refutaram essa idéia, mas ela ainda persiste nos filmes e no
imaginário popular.
Jamais houve escravidão no Egito. Todos os que trabalharam
na construção dos monumentos recebiam salário – embora, como hoje, houvesse
diferenças marcantes entre os salários dos diversos tipos de operários.
Um
segundo erro é o de que o faraó seria uma espécie de tirano, cercado de servas
e concubinas. Pois bem: eu não desejaria a ninguém o cotidiano de um faraó, que
era ainda mais pesado do que o de um chefe de Estado atual. Para começar, ele
precisava acordar antes do amanhecer e fazer suas orações no templo. Em
seguida, tinha de cumprir uma longa agenda de reuniões com ministros, com
emissários de outros países etc. Além disso, o faraó não era um monarca
absolutista. O regime egípcio estava muito mais próximo da monarquia
constitucional. O rei devia respeitar uma série de normas, fundadas sobre as
idéias de retidão e justiça e sobre a necessidade de alimentar toda a
população. Os textos dizem literalmente que o faraó estava sujeito a essas leis
primárias.
VEJA – Ramsés, herói de seus livros, seria um bom governante
nos dias de hoje?
Jacq – Creio que sim. Na época, a região compreendia povos
com interesses conflitantes, como palestinos, hititas, sírios etc. Ramsés
conseguiu promover a paz entre eles. Até hoje podemos ver o tratado que sela
essa paz, escrito em hieróglifos nos muros de Karnak. É um texto de
inacreditável modernidade.
VEJA – A idéia do arqueólogo como uma espécie de Indiana
Jones faz algum sentido atualmente?
Jacq – Não. O arqueólogo como aventureiro pertence mais ao
século XIX. Hoje, a grande aventura para a arqueologia está na exploração dos
métodos científicos, que vão desde a biologia molecular até o uso de satélites
para o mapeamento de sítios.
VEJA – Cientistas descobriram traços de tabaco e cocaína nos
tecidos de uma múmia. Como isso é possível se ambos os produtos são originários
da América?
Jacq – Bem, há quem diga que existia uma rota de comércio
entre o Antigo Egito e a América. Além das amostras de tabaco e cocaína nas
múmias, os defensores dessa tese apontam como evidência o fato de os astecas
também terem construído pirâmides. Conheço muito pouco as civilizações da
América do Sul para dar uma opinião séria a respeito desse ponto, mas acho que
é preciso manter o espírito aberto. Eis aí uma bela questão para os jovens
arqueólogos. Não acho que seja absurda a idéia de que os egípcios possam ter
realizado viagens transoceânicas.
VEJA – Países como a Grécia reclamam a devolução de objetos
que foram retirados de seus sítios arqueológicos e levados para museus da
Inglaterra e da França. O senhor acha justo esse tipo de reivindicação?
Jacq – Minha visão é pragmática. Durante muito tempo, o
governo egípcio não mostrou a menor preocupação em preservar seu acervo
arqueológico.
Ninguém roubou o obelisco que enfeita a Praça da Concórdia, em
Paris. Ele simplesmente foi vendido à França. Há também templos inteiros que
foram doados a determinados países europeus por razões políticas. Será que
deveríamos devolver tudo? No plano moral, sim. No plano prático, acho que não
podemos ter ilusões. Os objetos que preenchem as prateleiras do Louvre, do
Museu Britânico ou do Museu de Turim dificilmente voltarão ao Egito.
Para mim,
a solução ideal está na reconstituição dos monumentos mais importantes. Dou-lhe
um exemplo: ao lado da pirâmide de Saqqara, existe um santuário onde foi
colocada uma imitação perfeita da estátua original do faraó. Ficou ótimo. Há
muitos sítios que poderiam passar por reformas semelhantes, sem que para tanto
fosse necessário gastar quantias absurdas de dinheiro.
VEJA – O que falta descobrir no Egito?
Jacq – Segundo as estimativas mais recentes, descobrimos
somente 20% ou 30% de tudo o que existe sob as areias do Egito. Mesmo no caso
dos sítios mais conhecidos, como o de Gizé ou o de Saqqara, há várias áreas que
permanecem intocadas. Uma das descobertas que ainda precisam ser feitas é a do túmulo
de Imhotep. Ele era arquiteto, médico, astrônomo e escritor. Foi um dos grandes
espíritos da História da humanidade. O local da tumba é um mistério para os
arqueólogos, mas já foi visitado por ladrões. Existem vários objetos com o nome
de Imhotep, de autenticidade comprovada, que já foram vendidos por antiquários.
VEJA – As pirâmides sobreviverão por mais quarenta séculos?
Jacq – Sou pessimista. Há inúmeros problemas, e
não sabemos como solucioná-los. Para começar, a Barragem de Assuã mudou o clima
do Egito. Hoje, chove muito mais do que na Antiguidade e as pedras são
sensíveis à umidade. Existe ainda a questão demográfica. A população do Egito
aumenta à razão de 1 milhão de habitantes por ano e, com ela, crescem as
cidades. Casas e prédios foram construídos às margens do platô das pirâmides.
Por fim, existe o grave problema da poluição. Se não surgirem novas técnicas de
preservação, acho difícil que esses monumentos durem outros 4.000 anos